A crescente judicialização envolvendo planos de saúde não é novidade no cenário brasileiro. Isso decorre da liberalidade fornecida pela Constituição Federal ao mencionar que a assistência à saúde é livre à iniciativa privada, abrindo espaço para a atuação das operadoras no setor.
Essa abertura, embora necessária para suplementar o sistema público de saúde, também ampliou os pontos de tensão entre beneficiários e operadoras, especialmente diante de negativas de cobertura, reajustes considerados abusivos e divergências interpretativas sobre a extensão das obrigações contratuais.
É importante rememorar que os contratos de planos de saúde são típicas relações de consumo que se apresentam em bilateralidade: de um lado, consumidores que usufruem de um serviço essencial, e de outro, operadoras que fornecem um serviço complexo e fundamental para a perpetuidade da vida humana.
A Lei nº 9.656/1998, conhecida como Lei dos Planos de Saúde, surge nesse contexto a fim de regular os planos e seguros privados de assistência à saúde, definindo normas para o seu funcionamento. O objetivo central foi de equilibrar a relação contratual, corrigindo práticas abusivas que até então eram recorrentes e trazer maior segurança jurídica para ambos os agentes.
Em razão do caráter público dessas atividades e da indisponibilidade do direito à saúde, nos termos do art. 197 da Constituição Federal, a ANS — autarquia sob regime especial instituída pela Lei nº 9.961/2000 — foi criada com o intuito de desempenhar papel central no fortalecimento do aparato regulatório do setor.
A Agência assumiu funções de fiscalização e normatização, incumbindo-se de assegurar a qualidade dos serviços prestados pelas operadoras, monitorar sua sustentabilidade econômico-financeira e proteger os direitos dos beneficiários dos planos de saúde.

Mas qual a relevância prática da ANS nesse contexto?
Uma competência de suma importância atribuída à ANS, é a elaboração do rol de procedimentos e eventos em saúde que devem ser obrigatoriamente cobertos pelas operadoras.
Essa atribuição encontra fundamento no art. 4º, III, da Lei nº 9.961/2000, que confere à Agência a função de elaborar o rol de procedimentos e eventos, que serão instituídos como referência básica para os fins do disposto na Lei nº 9.656/1998.
Trata-se de prerrogativa normativa essencial para padronizar uma cobertura mínima obrigatória, orientando tanto consumidores quanto operadoras sobre a extensão dos serviços que integram a assistência suplementar à saúde.
A ANS também atua como responsável por atualizar e estruturar o rol de procedimentos, de modo a acompanhar a evolução científica, tecnológica e sanitária. Essa disposição encontra-se prevista na RN nº 465/2021, a qual foi elaborada a partir de diretrizes que levaram em consideração, os seguintes aspectos:
a) os princípios da Avaliação de Tecnologias em Saúde – ATS;
b) a observância aos preceitos da Saúde Baseada em Evidências – SBE; e
c) o resguardo da manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do setor.
No entanto, na prática, a atuação das operadoras de planos de saúde encontra limites nas normas de proteção ao consumidor, cujas diretrizes nem sempre se alinham ao regime da saúde suplementar.
Cabe mencionar que a jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconhece que, como regra geral, os planos de saúde submetem-se ao Código de Defesa do Consumidor — entendimento sintetizado na Súmula 608/STJ. A única exceção recai sobre os planos de autogestão, cuja lógica mutualista afasta a incidência do CDC por não configurarem relação típica de consumo.
Sob essa ótica existe um contraponto. O CDC garante uma vasta proteção ao consumidor contra cláusulas abusivas,sobretudo quando comprometem o núcleo essencial do tratamento médico prescrito.
Já a Lei dos Planos de Saúde estabelece regras específicas para cobertura, reajustes e cancelamentos, o que pelo princípio da especialidade, em tese, prevalece sobre normas gerais do CDC na regulação da saúde suplementar, servindo como baliza para interpretação contratual e avaliação da legalidade das cláusulas.
O problema ocorre quando essas duas normas não conversam de maneira linear. A passo que o plano busca limitar a cobertura quando ausentes pressupostos ou extremamente onerosos de maneira injustificada, o consumidor também tem direito de receber o que foi contratado e os respectivos tratamentos essenciais.
Esse conflito deságua, sobretudo, nas cláusulas limitadoras de direitos, como aquelas que definem quais procedimentos devem ou não ser custeados pelas operadoras, e nas regras que disciplinam o cancelamento dos contratos. Esses pontos de tensão frequentemente dão origem a divergências interpretativas, mobilizando inicialmente os órgãos administrativos de defesa do consumidor vinculados ao Ministério Público nos Municípios e Estados (como PROCON e DECON), podendo, por fim, originar a judicialização.
Afinal, qual é a natureza do rol de procedimentos e eventos da ANS e a sua real repercussão?
Em junho de 2022, a 2ª Seção do STJ decidiu que o rol era, em regra, taxativo. Assim, a cobertura obrigatória dos planos se limitaria aos procedimentos listados, gerando uma obrigação por parte da operadora.
Decidiu que se existe outro procedimento listado no rol que seja eficaz, seguro e suficiente para tratar o paciente, a operadora não é obrigada a custear um tratamento fora da lista, haja vista a existência de um substituto terapêutico disponível.
Contudo, tratou da possibilidade de contratação de cobertura ampliada ou a negociação de aditivo contratual para garantir procedimentos que não constam do rol.
E ainda, em casos excepcionais, se não houver substituto terapêutico ou se todos os procedimentos do rol tiverem se mostrado insuficientes, poderia autorizar o tratamento indicado pelo médico ou odontólogo assistente, desde que sejam observados critérios rigorosos: o procedimento não deve ter sido expressamente indeferido pela ANS, deve haver comprovação científica de sua eficácia, recomendações de órgãos técnicos nacionais ou internacionais devem existir, e o juiz pode, se necessário, dialogar com especialistas ou com a comissão de atualização do rol, sem transferir a competência do caso para a Justiça Federal.
Promulgação da Lei nº 14.545/2022
A decisão mencionada gerou grande mobilização popular, especialmente entre familiares de pessoas com autismo, pessoas com deficiência e portadores de doenças raras, uma vez que diversos tratamentos recomendados para esses casos não estavam contemplados no rol da ANS.
Diante desse cenário, o Congresso Nacional editou a Lei nº 14.454/2022, buscando superar o entendimento firmado pelo STJ.
A lei alterou o art. 10 da Lei dos Planos de Saúde (Lei nº 9.656/1998), incluindo o §12, que estabelece o caráter exemplificativo do rol da ANS, permitindo que procedimentos não listados possam ser cobertos desde que atendam a critérios técnicos e médicos específicos.
Vale ressaltar, entretanto, que, para que o plano de saúde seja obrigado a custear o procedimento ou tratamento, é necessário comprovar a sua eficácia, conforme previsto no §13, também inserido pela Lei nº 14.454/2022.
Em suma, a Lei nº 14.454/2022 passou a obrigar os planos de saúde a cobrirem tratamentos ou exames não listados no rol da ANS, desde que preenchidos certos critérios técnicos.
Julgamento da ADI 7.265
A União Nacional das Instituições de Autogestão em Saúde (Unidas) ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) em face da Lei nº 14.454/2022, argumentando que a obrigação imposta aos planos de saúde de custear procedimentos além daqueles previstos no rol da ANS seria inconstitucional.
A tese abordou que a norma esvazia a função regulatória da ANS, prejudicando o papel do órgão na definição e atualização do rol de procedimentos obrigatórios.
Além disso, a entidade sustentou que a lei compromete o equilíbrio econômico-financeiro dos planos de saúde, uma vez que amplia a obrigação de cobertura sem critérios claros de custeio e, ainda desrespeita dispositivos constitucionais, incluindo o caráter complementar dos planos de saúde, bem como os princípios da livre iniciativa, isonomia e segurança jurídica.
Entendimento do STF
Por maioria de votos, a Corte declarou a constitucionalidade da Lei nº 14.454/2022, condicionando sua aplicação à observância de determinados critérios, como a comprovação da eficácia do tratamento, a existência de recomendação técnica de órgãos especializados e o respeito aos limites estabelecidos para a cobertura excepcional de procedimentos fora do rol da ANS.
Para o STF, o §13 do art. 10 da Lei nº 9.656/1998, com as alterações introduzidas pela Lei nº 14.454/2022, cria um mecanismo excessivamente aberto de flexibilização do rol da ANS, considerando que:
(i) sua redação não estabelece critérios técnicos objetivos e verificáveis;
(ii) permite a cobertura de procedimentos fora do rol sem qualquer mediação ou avaliação prévia da ANS; e
(iii) exige apenas o preenchimento alternativo de um dos critérios previstos nos dois incisos, o que reduz a capacidade de gestão do risco pelas operadoras e aumenta, potencialmente, a judicialização das demandas.

Critérios estabelecidos
Dessa forma, ao estabelecer uma interpretação mais restritiva, a ausência de um determinado procedimento no rol da ANS, como regra, impede sua concessão judicial, salvo se for comprovado, de forma cumulativa, o atendimento aos cinco requisitos objetivos estabelecidos pelo STF, os quais são:
1) Prescrição de profissional habilitado
2) Inexistência de veto ou análise pendente pela ANS
3) Ausência de alternativa terapêutica no rol vigente
4) Comprovação científica da eficácia e segurança
5) Registro aprovado na Anvisa
O objetivo no geral foi adequar os critérios que geram a obrigação de cobertura de tratamentos não listados no rol da ANS, observando as teses e condições estabelecidas pelo STF, de modo a compatibilizar a lei com os princípios constitucionais e a segurança jurídica.
Embora a Lei nº 14.454/2022 estabeleça um avanço significativo na proteção do direito à saúde, ampliando a cobertura de procedimentos essenciais e reconhecendo a complexidade da medicina moderna também traz desafios concretos para a sustentabilidade dos planos de saúde e para a segurança jurídica, exigindo critérios claros e o equilíbrio entre proteção do consumidor e gestão do risco pelas operadoras.
Em síntese verifica-se que a Lei nº 14.454/2022 representa um equilíbrio delicado entre a proteção do direito à saúde e os limites da gestão econômica e regulatória, mostrando que avanços legislativos no setor de saúde suplementar exigem harmonia entre direito, técnica e prudência administrativa para que seus benefícios sejam plenamente realizados.

Referências
BRASIL. Agência Nacional de Saúde Suplementar. Novo Rol de cobertura dos planos de saúde entra em vigor. 2018. Disponível em: https://www.ans.gov.br/aans/noticias-ans/consumidor/4279-novo-rol-de-cobertura-dos-planos-de-saúde-e.
Reicher, S. C.; Ribeiro, J. C. T.; Costa, V. F. Lei 14.454/22: a polêmica sobre a taxatividade e os possíveis riscos aos direitos das pessoas com deficiência e doenças raras. Migalhas, De Peso, 17 out. 2022. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/375316/a-polemica-sobre-a-taxatividade-e-os-riscos-as-pessoas-com-deficiencia.
BRASIL. Lei nº 9.656, de 03 de junho de 1998. Dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde. Brasília, DF, 04 jun. 1998. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9961.htm.
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Código de Defesa do Consumidor. Brasília, DF, 12 set. 1990..
BRASIL. Lei nº 9.961, de 28 de janeiro de 2000. Cria a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS e dá outras providências. Brasília, DF, 29 jan. 2000. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9961.htm.
BRASIL. Resolução Normativa nº 428, de 07 de novembro de 2017. Atualiza o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, que constitui a referência básica para cobertura assistencial mínima nos planos privados de assistência à saúde, contratados a partir de 1º de janeiro de 1999; fixa as diretrizes de atenção à saúde; e revoga as Resoluções Normativas – RN nº 387, de 28 de outubro de 2015, e RN nº 407, de 3 de junho de 2016. Rio de Janeiro, 07 nov. 2017. Disponível em: http://www.ans.gov.br/component/legislacao/?view=legislacao&task=TextoLei&format=raw&id=….
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula nº 608. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, 17 abr. 2018. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/sumanot/toc.jsp?livre=(sumula%20adj1%20%27608%27).sub..BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 2ª Seção. Embargos de Divergência no Recurso Especial (EREsp) 1.886.929-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 8 jun. 2022. Informação 740.
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